Gabinete (PT)

No corpo de trabalho de Catarina Leitão, é possível observar uma coerência formal e conceptual que poderíamos dizer autossimilar. Como acontece num fractal (um objecto geométrico do qual cada uma das partes é igual ao seu todo), cada peça individual de Catarina Leitão parece conter a totalidade do seu trabalho. Caracterizada por uma pesquisa centrada em conceitos como a fronteira entre o artificial e o natural, estratégias de adaptabilidade, hibridismo, o corpo e a sua relação com a paisagem, a obra da artista, firmemente ancorada na linguagem da escultura, utiliza como meios prioritários a instalação e o desenho.

Exercícios de reconhecimento do espaço da folha, os desenhos de Leitão produzem uma tensão permanente entre o bidimensional e o tridimensional. Esta tensão é corporizada em peças como Uplift (2008) ou Invasive Species (2010), trabalhos em forma de livro que, quando abertos, saltam para a ocupação do espaço. Uma segunda centralidade é a questão da portabilidade, auto-referencial para uma artista que durante muitos anos trabalhou entre Nova Iorque e Lisboa. Com o papel como um dos seus suportes de preferência, operações como a dobragem, o embalar, fechar, adquirem uma importância crescente à medida que outros meios (tecido, feltro, madeira) são obrigados pela mão hábil da autora a emular o primeiro. A mancha, quase sempre numa aguarela rica em gradações subtis e finas transparências, aparece-nos ora no centro do papel ora desafiando as suas margens, estendendo-se para além delas. São representações que desafiam a bidimensionalidade do meio – projectos que perfuram a fina membrana que separa ficção e realidade.

Em Gabinete (2013) podemos imaginar que é isso que aconteceu: um desenho que logrou projectar-se numa terceira dimensão, libertando-se das limitações do papel. Livre, é necessariamente um objecto contingente: uma escultura indecisa entre uma multiplicidade de formas, das quais a caixa representa a máxima potência. No seu menor volume (inerte) é uma mala transportável, reminiscente de trabalhos como a Boîte en Valise de Marcel Duchamp ou a Galerie Légitime de Robert Filliou. A importância da redução e da portabilidade, do objecto (des)dobrável implica uma capacidade de movimento bidireccional entre os espaços tri e bidimensionais, ou reais e ficcionais. Assim, a peça não é apenas a representação de um processo de corporalização de um desenho (o projecto) mas sim uma aposta na demarcação de um caminho, sempre aberto e com duas vias, entre as duas dimensões.

Por enquanto uma peça única, Gabinete é o primeiro resultado de uma série iniciada em 2013 e sinaliza uma nova pesquisa da autora, uma investigação centrada na ideia do Museu Portátil e sua relação ambígua com os espaços institucionais da Arte Contemporânea. É também um trabalho que surge na continuidade da série anterior, Systema Naturæ, na qual a artista criou uma pesquisa de botânica ficcional, criando espécies híbridas através da apropriação e recombinação de formas vegetais e mecânicas, naturais e artificiais. Gabinete parece ser também isso, um corpo híbrido que se insinua no espaço como um organismo independente: adaptável e dinâmico.

José Roseira, 2013