Cadernos de campo e contracampo por Maria do Mar Fazenda

Maria do Mar Fazenda
in Catarina Leitão | Orografias, Giefarte/Documenta, Lisboa, 2019.

Num dia cinzento e com aguaceiros, deixei Lisboa de carro para ir visitar o atelier da Catarina Leitão (n. 1970, em Estugarda) que vive no campo há um tempo para cá. Com as indicações que a Catarina me enviou, decidi não ligar o GPS no carro para me orientar no caminho que desconhecia. Estava com vontade de seguir a paisagem e não a impressão desta na estrada ou a sua reprodução nas instruções ditadas: virar à direita, à esquerda, sair na rotunda, na saída tal, na quilometragem x, etc. Perdi-me. Perdi-me talvez porque olhava demais a Paisagem instável (título de uma série de trabalhos de 2017) que se desdobrava à medida que eu me movia por entre curvas, subidas e descidas, terrenos cultivados, casas muradas, arquitecturas inacabadas, remodelações na estrada, árvores e canaviais, placas e candeeiros, o traçado na estrada alcatroada e os desvios de caminhos de terra…

As instruções que a Catarina tinha escrito não só correspondiam à descrição e a um mapeamento (por palavras) de um determinado itinerário, como evocavam também, percebi depois quando fomos ver os trabalhos que tinha em mãos, os desenhos (ou melhor: o pensamento que faz acontecer o seu desenho) da série que viria a receber o nome de Orografias.

Antes da vila há um campo de futebol do lado direito, logo a seguir há uma curva. No final da curva virar à direita. Há umas obras, estão a construir um passeio em frente a uns pomares. Há um poste de alta tensão na beira da estrada. Deves ver umas casas brancas no cimo da encosta. Sobe a estrada de terra e continua até à casa com risca azul… (E-mail escrito pela Catarina uns dias antes da minha visita, os realces são dela.)

Talvez me tenha perdido porque as instruções que me guiavam eram demasiado detalhadas: descreviam o antes e o depois de uma dada morfologia, indicavam o que se veria em frente e atrás de uma montanha, nomeavam as árvores que ladeavam a estrada, etc. Poder-se-ia estar a descrever um mapa, a representação gráfica de uma visão totalizadora: a do olhar de pássaro. Não fosse, naquele momento, o meu confronto ser entre a descrição escrita da e a paisagem. Aquelas indicações correspondiam, antes, a um ponto de vista terrestre, mas que, ao mesmo tempo, observava (e mapeava) para além da sua perspectiva.

É esta capacidade de ver mais do que o olhar fotográfico, por exemplo, que caracteriza o desenho científico, porque este não se circunscreve apenas ao que o olho vê de um determinado ponto de vista, ele vê (e desenha) para além da realidade planificada. O desenho científico de um peixe, por exemplo, pode expor as suas guelras com maior detalhe, desdobrando-as e revelando o seu interior, reproduzindo no desenho aquilo que não corresponde ao seu posicionamento natural. No entanto, o desenho destas “inverdades” é feito em prol de uma verdade científica ou pedagógica: estudar, analisar, dar a conhecer. Tal como nos mapas, as regras da cartografia propõem a leitura de uma verdade científica através de “desacertos” entre o desenho e o texto (as legendas), o jogo de escalas, o corte e a projecção. Até o próprio suporte do mapa, o papel, está envolvido neste jogo de revelação e ocultação: a sua dimensão, dobragem, transparência, etc.

No entanto, ou talvez a surpresa não seja inesperada, as Orografias (do grego óros, montanha, e –grafé, escrita) reproduzidas nestes desenhos não correspondem e não descrevem um determinado território nem tão pouco aquele que eu percorri de carro e onde me perdi. O desenho pode revelar o que está escondido, mas também pode inventar e voltar a esconder aquilo que vê.

Estas paisagens são ficções ainda que sejam compostas de correspondências reais: uma linha de horizonte, o que existe abaixo e acima da terra, um relevo, um furo, a monocultura, os sedimentos, a descarga de energia na terra, etc. O desenho destas paisagens toma em conta diversas preponderâncias geográficas, morfológicas, meteorológicas, assim como também, integra sinais ecológicos, económicos, políticos, actuais, concretos e reais. Conceptualmente a paisagem descrita nas Orografias de Catarina Leitão pode ser relacionada com a Terceira paisagem, um termo concebido por Gilles Clément, jardineiro, arquitecto paisagista, agrónomo, botânico e entomologista, que em 2003, escreveu o ensaio “Le Manifeste du Tiers-Paysage”onde mapeou este conceito.

A Terceira Paisagem — um fragmento indeterminado do Jardim Planetário — designa a soma dos espaços que os humanos entregam à evolução da paisagem — à natureza. Nesta categoria incluem-se os espaços abandonados urbanos e rurais, espaços de transição, baldios, pântanos, turfeiras, mas também as zonas adjacentes às auto-estradas, costa marítima, aterros ferroviários, etc. A estas áreas abandonadas podemos adicionar espaços que já pomos de lado, reservas por natureza: lugares inacessíveis, picos de montanha, áreas não cultiváveis, desertos; e reservas institucionais: parques naturais, parques regionais, reservas naturais.

Quando comparada com os territórios submetidos ao controlo e exploração humanos, a Terceira Paisagem constitui uma área privilegiada de receptividade à diversidade biológica. Cidades, quintas e explorações florestais, lugares dedicados à indústria, ao turismo, às actividades humanas, são áreas de controlo e decisão que tanto podem permitir como excluir totalmente a diversidade. A variedade de espécies num campo cultivado ou numa exploração florestal é baixa quando comparada com um espaço vizinho “abandonado”…

Deste ponto de vista, a Terceira Paisagem pode ser considerada como um reservatório genético do planeta, um espaço do futuro…

Regressemos às indicações do caminho que me foram enviadas pela Catarina. A sua pormenorização revela uma observação detalhada e uma atenção à paisagem em transformação, seja pelas condições meteorológicas seja pelas acções do homem sobre ela. O método para o desenho de Catarina Leitão também surge da tensão entre o estudo e o imaginário, o natural e o artificial, a regra e a invenção.

Para esta observação cuidada do real, ao mesmo tempo que se afasta dele, é preciso estar, simultaneamente, dentro e fora de campo. Parece-me que foi seguindo esta premissa que Catarina Leitão concebeu a peça Atelier Portátil em 2014, um espaço de trabalho que permite a sobreposição de perspectivas. Neste atelier, a artista pode trabalhar no meio da natureza, tal como Cézanne, que nos últimos anos da sua vida saía do seu atelier para pintar (no exterior) a montanha Sainte-Victoire. Uma actividade que no caso do pintor se tornaria diária, compulsiva, obsessiva e sem distancia crítica, imersiva. Ainda que percorrendo o mesmo percurso, do interior para o exterior (ou procurando um posicionamento fronteiriço, como o faz no seu actual atelier), Catarina Leitão faz o inverso de Cézanne. O pintor partia da realidade para chegar ao irreal, síntese deste movimento é o momento em que deixou de haver diferença entre a (sua) pintura do relevo da montanha e a pintura das pregas de uma toalha numa natureza morta.

Os relevos inscritos por estas Orografias assim como as espécies dissecadas na série de desenhos Systema Naturæ de 2012, não são reproduções de nenhuma cordilheira reconhecível ou de uma espécie botânica em particular, mas o seu desenhar, imiscuindo regras reconhecíveis como “científicas”, confere-lhes verdade e realidade crítica. Para além da dualidade do real/inventado há outra simultaneidade em jogo. Estas paisagens, por um lado, continuam uma conversa com uma paisagem maior – o corpo de trabalho de Catarina Leitão –, e, por outro, são informadas por vivências de determinados territórios: a Catarina já viveu em Manhattan, na Bica em Lisboa e os desenhos reunidos na série Orografias foram iniciados durante uma residência artística na ilha da Madeira. É exemplo desta “heurística viva” a condição atmosférica (o que se passa acima da linha do horizonte) do tríptico intitulado Orografias #001, mas também em alguns dos desenhos de menor escala desta série: o céu está carregado ou “capacete” como é conhecido na Madeira onde este tipo de condensação de humidade no ar é muito comum. No prefácio «As formas do informe: Goethe e as nuvens», escrito por João Barrento ao livro O Jogo das Nuvens, que também traduziu, é descrito este método encontrado entre a prática e a observação, a análise e o desenho:

O estudo e a escrita das nuvens em Goethe revelará sempre, e a partir da leitura de [Luke] Howard, duas faces complementares, uma empírica (mas que não chega a ser científica: a da observação e descrição, também através do desenho) e outra simbólica (mas que não é propriamente filosófica, pelo menos em termos de conceptualidade sistémica: a da interpretação, por vezes em obras de poesia), à luz de duas leis fundamentais do seu pensamento: a da polaridade (sístole-diástole, atracção-repulsa, activo-passivo) e a da potenciação ou elevação a uma potência superior (do fenómeno para a ideia, do físico para o espiritual, do stratus baixo para o cirrus alto…).

A conjugação da heurística e de uma perspectiva viva sobre as coisas parece ser o método seguido na constituição destes cadernos de campo, forma como pode ser descrita a pesquisa e prática artísticas de Catarina Leitão, em torno da paisagem enquanto um campo de forças (físicas, humanas, tecnológicas). Como resultado deste método, é recorrente o formato do caderno ou do livro de artista, assim como peças escultóricas (ou Desenho expandido), que põem em cena um discurso sobre uma determinada forma. O formato dos desenhos adoptado na série Orografias, como o próprio título sugere, é o de uma carta ou mapa: aberto e compreensível. As vistas sobre este campo multiplicam-se em diversos cortes, perspectivas e em secções do terreno, assim como fragmentos que são destacados e reproduzidos noutra escala. Por vezes, a descrição da estrutura ou da composição de um relevo é organizada em páginas desenhadas no plano do papel, para depois, num segundo momento, no regresso ao atelier ser ganha uma nova perspectiva sobre o território que está realmente a ser definido: o desenho.

O par Site/Non-site cunhado por Robert Smithson explora a dialéctica entre a prática no exterior e no atelier, experiência ou movimento que moldou a relação do seu trabalho com a paisagem. Numa entrevista em 1969, Smithson propôs uma nova interpretação da obra de Cézanne, que, na sua opinião, tinha sido distorcida pela visão dos cubistas, que a reduziam a um jogo meramente formalista. Smithson sugeria a necessidade de recuperar a referência física no trabalho de Cézanne e a sua forte ligação a certos lugares na Provença, nomeadamente à montanha Sainte-Victoire. Gosto de pensar que este reenvio de Smithson a Cézanne, surgiu no contexto da sua intervenção na paisagem Asphalt Rundown realizada em 1969, em Itália. Identifico o mesmo tipo de relação afectiva com o território assim como o desejo comum de a resgatar ao curso do tempo. No caso de Cézanne trata-se de um resgate a um tempo arcaico: “Olhe para esta montanha, um dia isto foi fogo”. Smithson e Catarina Leitão participam desta temporalidade que, entretanto, foi tomada pelo tempo capitalista. Talvez seja o desenho (a exposição, a exploração, a descrição) de um contratempo, um dos objectos destes cadernos de campo e de contracampo.

Maria do Mar Fazenda
Lisboa e Arrábida, Abril de 2019