Biblioteca Natural (PT)

A sala é o armário / o armário a biblioteca.
A biblioteca é o livro / o livro o armário.

O livro abre / o desenho expande.
O desenho abre / o armário expande.

Artefactos factícios, estes livros/elementos desta Biblioteca Natural fazem parte de um mundo hipostático construído por uma personagem-autora. A exploração continuada da fina (?) membrana que separa o dentro do fora, o eu e o outro, o humano e o não-humano, a investigação das tensões exoráveis que atribuímos às dualidades natural/artificial e ideia/forma suscitam a suspeita de que não há nada que tenha nome ou representação que não tenha já sido domesticado pela força combinada das nossas imaginações. O armário e o vestido, o que guarda e o que reveste, são também as nossas ferramentas de contacto. Através deles definimos a nossa forma e o seu negativo. Abri-los, despi-los, é também interiorizar o que está fora. O livro é absorvente.

Também absorventes, e personagens recorrentes, as manchas/volumes negros que povoam estes desenhos incluem-se num conjunto de estratégias formais utilizadas para explorar a relação entre superfície e volume, entre desenho e escultura. Servindo o mesmo propósito, o livro tridimensional traz consigo os três momentos da instalação: um inicial, de repouso e portabilidade (fechado, bidimensional), o acto performativo (abrir, instalar), e o corpo expandido (aberto, tridimensional). Num processo de replicação do está nele contido, a abertura do armário desencadeia uma ocupação da sala com elementos que se projectam a partir do universo representado nos livros da Biblioteca Natural. Exteriorizados, estes mesmos elementos são multiplicados por seis pontos de luz, acrescentando uma nova camada ao desenho, densificando-o.

O conteúdo dos livros, variando entre o código, o corriqueiro e o quimérico, é também definido por esta ideia de tensão entre dois estados. Algures entre o natural e o artificial, as formas híbridas que os povoam sugerem um processo avançado de miscigenação ou indiferenciação entre as duas categorias. Se nestes desenhos podemos identificar a marca de uma colonização humana do natural, a citação dos primórdios da Botânica permite-nos também supor um processo inverso e ler neste trabalho a suspeita de uma ocupação natural das formas que aprendemos a considerar artefactuais.

Documentos do entre, esta biblioteca e este armário existem no território definido por estas dicotomias: o cruzamento entre o real e o ficcional, entre o mundo físico e o mundo das ideias, entre a autoridade do arquivo e o delírio do criador.

Este texto foi escrito por alguém entre o José Roseira e a Catarina Leitão, em Março de 2016